sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Star Wars e alguns conceitos literários

Nas aulas de Introdução aos Estudos Clássicos do semestre passado, o prof. Jorge de Almeida nos introduziu à analise de narrativas. Dentre estes conceitos, estavam os que eu citei na postagem anterior: verossimilhança, deus ex machina e suspension of disbelief. Este último, creio, foi um brinde do professor…
Para falar sobre eles, usarei como exemplo os filmes da saga Star Wars e algumas obras literárias.

O conceito de verossimilhança foi descrito por Aristóteles em sua Poética. Segundo ele, as obras narrativas precisam ser verossimilhantes, ao passo que não fujam do que é passível de se tornar real. Por exemplo: um ser humano pode andar, mas não voar por conta própria; se um humano tivesse a capacidade inata de voar numa obra narrativa, a obra tornaria-se inverossimilhante, a não ser que o contexto da obra sugira a possibilidade de voo dos humanos.
Para entender melhor a verossimilhança no contexto “humano” que conhecemos, usarei uma obra literária. Em sua obra O falecido Mattia Pascal, o escritor Luigi Pirandello conta a história de Mattia Pascal, um homem que é dado como morto durante uma viagem e decide mudar de nome, desfrutando assim de uma vida nova, longe de sua cidade de origem. Ele enjoa desta vida fake depois de um tempo e retorna à sua cidade, deixando os parentes e conhecidos perplexos. À época, Pirandello recebeu duras críticas sobre seu livro, classificado como “absurdo e inverossimilhante”. Até que saiu uma notícia num famoso jornal italiano, dando conta de uma situação extremamente parecida com o mote do livro. Pirandello aproveitou a deixa e incluiu em uma edição posterior do livro um posfácio tratando das críticas ao seu livro e do fato de tal notícia ter tornado seu livro bem verossímel.
Usando Star Wars agora como exemplo, os Jedis e os Siths são capazes de mover objetos, pular grandes distâncias e, no caso do Darth Vader, matar uma pessoa à distância (lembram-se da cena em que ele mata o almirante em comando, depois das tropas rebeldes invadirem uma base do Império, só olhando pra ele pelo vídeo?). Este aspecto da obra pode ser considerada verossimilhante porque a mitologia da obra descreve os Jedis e os Siths com poderes, digamos, sobrenaturais, possíveis por meio do uso da Força. Claro que sabemos que não existem Jedis e Siths e tudo o mais, mas a verossimilhança aí se descreve por serem características que podem vir a ser reais, se um universo alternativo existisse.
Só há um probleminha: como é que ocorrem explosões no vácuo com um barulho tão grande? Sabemos todos que no vácuo não é possível a ocorrência de fogo (não tem oxigênio pra queimar…) e o som não se propaga. Acredito que mesmo em universos alternativos isto não seja possível. E como é que fica, então?
Neste caso, usamos o que S. T. Coleridge chamou de suspension of disbelief.
Coleridge descreve em sua Biographia Literaria o processo de criação de seus livros. No capítulo XIV ele descreve a criação das Baladas líricas, dizendo:
[…] no qual se concordou que meus esforços deveriam ser direcionados a pessoas e personagens sobrenaturais, ou pelo menos fantásticos; contudo, para transferir da nossa natureza interna um interesse humano e uma semelhança com a verdade suficiente para obter nestas sombras de imaginação uma suspensão disposta da descrença, neste momento constitui-se uma fé poética. […]
(tradução feita por mim =P)
Ou seja, Coleridge invoca uma interrupção no que acreditamos, para estarmos dispostos a acreditar no que lemos – ou vemos, no caso da saga Star Wars. E isso realmente acontece. Tanto é que ficamos fascinados quando Luke Skywalker vai desviando dos disparos barulhentos das naves imperiais e consegue acertar o núcleo da Estrela da Morte por meio da Força, fazendo-a explodir em pedacinhos.
É importante dizer que até a disposição em aceitar universos alternativos onde existam sabres de luz, Jedis, Siths e outras espécies estranhas de vida implica o conceito de suspension of disbelief. Se não fosse assim, nenhuma história de literatura fantástica faria sucesso, seja ela qual for.
Me ocorreu outro detalhe agora: como a bandeira americana tremulou na Lua quando Neil Armstrong pousou lá na década de 60? Apesar de parecer impossível que ocorram correntes de ar na superfície lunar, acreditamos que ele pousou e fincou a bandeira na Lua…
Na literatura contemporânea a “prática” do suspension of disbelief é tão, digamos, comum, que quase não questionamos a verossimilhança das narrativas. Se pegarmos a saga Crepúsculo, por exemplo, podemos misturar verossimilhança com suspension of disbelief facilmente. Na mitologia vampiresca criada por Anne Rice, os vampiros viravam cinzas no contato com a luz do sol. Contudo, Stephenie Meyer nos apresentou vampiros que brilham ao sol. Confrontando as duas histórias, a saga de Meyer é obviamente inverossimilhante. Mas, quem liga? Os entusiastas da saga Crepúsculo, em sua maioria, conhecem a obra de Rice e mesmo assim aceitam os vampiros que brilham ao sol naturalmente.
Esta mudança na característica dos vampiros poderia ser encarado, pelos críticos mais ferrenhos, como uma modalidade de inserção narrativa chamada de deus ex machina.
Em latim, a expressão deus ex machina significa “deus saído da máquina”. Refere-se à inserção, no decorrer da narrativa, de algum elemento externo à cena que visa resolver um problema sem solução ou apresentar explicações para situações insolúveis. No caso da saga Crepúsculo, os vampiros interagem livremente com os humanos (e o vampiro Edward até casa-se com a humana Bella, olhem só!). Eles não se mostram ao sol, mas porque isso despertaria a desconfiança dos humanos. E a única justificativa que é encontrada sobre esta característica em especial é uma fala do Edward, onde ele diz que queimar ao sol é “mito”. Ou seja: alterando a mitologia original, Meyer fez uso de um deus ex machina por não justificar esta característica.
Para exemplificar usando Star Wars, é só pensarmos na cena em que Darth Vader mata Obi Wan “Ben” Kenobi. Se de repente a figura viva de Qi-Gon Jin aparecesse ali para impedir o Sith de matar o ex-mestre, configuraria-se um deus ex machina. Porque Qi-Gon estava morto, e os Jedis mortos apareciam apenas como espíritos de luz, e isso se fossem bons o bastante a ponto de aprender como virar um espírito de luz depois da morte. E o espírito de Qi-Gon não impediria Vader de matar Obi-Wan, por mais que tentasse.

Os conceitos que apresentei aqui são apenas alguns dentre a vasta literatura utilizada pelos críticos literários. Mas estes três conceitos são suficientes para pensarmos objetivamente no que lemos (ou assistimos), podendo até contribuir satisfatoriamente com a nossa compreensão sobre literatura.
Quanto ao moço que se espatifou junto com o monomotor no prédio da Receita Federal dos EUA, é uma prova do quanto a vida pode ser um tanto inverossimilhante. E só usando o suspension of disbelief para acreditar numa coisa dessas. Não é?
=P

6 comentários :

  1. Olá, Elise!

    Que texto mais interessante! Nunca havia percebido esses conceitos em obras de ficção. O termo "deus ex machina" eu já havia ouvido, mas não conhecia o seu significado.

    O estranho é que vejo pessoas que não gostam de ficção justamente por conterem cenas impossíveis no mundo real. Para mim, faz parte do prazer abandonar por alguns instantes as limitações conhecidas de nosso universo e acreditar que um homem pode voar ou que existe um monstro de fumaça em uma ilha que viaja no tempo.

    O bacana de ler seu texto é que agora conheço os termos por trás disso.

    Um abraço!

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  2. Oi Elise, que texto enorme! Dá até para iniciar uma monografia. Beleza. Está tudo bem explicadinho, muito legal.
    O termo "Deus ex maquina" vem do teatro, porque quando os gregos e romanos encenavam sua tragédias, muitas vezes a solução da trama se dava pela manifestação de um de seus muitos deuses, que descia ao palco através de um elevador - uma máquina. Mesmo que o problema fosse cabeludo, como a morte de um dos personagens, por exemplo, o tal deus podia consertar tudo como bem quisesse, afinal, era um deus. E como aqueles povos realmente acreditavam nesses deuses, para eles não era mitologia, era real. Era verossimilhante.
    Muitos autores modernos usam esse expediente para solucionar tramas que eles mesmos tornaram insolúveis, por pressa, ansiedade ou falta de talento mesmo. Seriados de TV usam e abusam desse recurso, as vezes é tão absurdo que dá dó. No último minuto, quando tudo parece perdido, o garoto prodígio da vez descobre uma fórmula secreta e salva todo o elenco da morte certa. Tenho para mim que a utilização do Deus ex machina é o "último dragão" do escritor e, na minha opinião, demonstra falta de consistência narrativa.
    Não considero, contudo, que em Star Wars - para usar o seu exemplo - a chegada repentina de Han Solo para ajudar Luke seja um Deus ex maquina porque, ainda que pareça, Lucas construiu a personalidade de Solo de forma que uma intervenção desse tipo fosse perfeitamente aceitável. Foi uma solução cuidadosamente preparada ao longo da história.
    Já a suspensão da incredibilidade é uma técnica sofisticadíssima, que implica em muita atenção do autor para não trocar os pés pelas mãos. Nem sempre funciona a contento, especialmente nas mãos de autores pouco experientes que desobedecem os próprios parâmetros que estabeleceram.
    Muitos dos meus livros favoritos tem premissas absurdas que se tornam aceitáveis pelo talento do autor em manipular bem essa "lei" da narrativa. Uma das maneiras de montar e sustentar a bolha de verossimilhança é construindo bons personagens. Um personagem bem construído indica ao seu autor o que fazer em cada situação.
    Um abraço e parabéns pelo artigo.

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  3. @Adelson: Que bom que gostou do artigo! =D
    Depois que eu tive as aulas, fiquei fissurada no assunto... ficou até mais interessante acompanhar as obras de ficção que eu gosto, por mais que parecessem meio absurdas...

    @Hiperespaço: Uau, que comentário grande! ^^
    Obrigada pela explicação do termo
    deus ex machina, quando escrevi o artigo estava sem acesso ao meu material de estudo clássico e acabei optando por explicar em linhas gerais, pra não cometer nenhum equívoco... vale lembrar que Aristóteles, na Poética, assinala que este recurso não deve ser usado à exaustão, para não prejudicar a peça.

    Quanto a Star Wars, se fosse Hans Solo aparecendo pra impedir o Vader de matar Obi-Wan, seria realmente factual, mas no caso que eu utilizei - Qi-Gon aparecendo - ficaria meio estranho... Hans Solo estava lá, vivinho, ao passo que Qi-Gon já estava morto há tempos. =D

    E eu considero o
    suspension of disbelief uma faca de dois gumes: quando mal utilizado, acaba com a obra... mas quando há uma boa estrutura de personagens e narrativa, é um deleite!

    Abraços, meus amigos, e obrigada pelos comentários! =D

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  4. Realmente muito bom seu texto Elise. Aprendi conceitos dos quais nunca tinha ouvido falar, apesar de vê-los e lê-los constantemente.
    A questão da verossimilhança na minha opinião é mais ou menos como disse o Adelson, é um momento de prazer, de fuga da realidade, que é exatamente o que buscamos muitas vezes nos livros e filmes. Um momento de exercício da imaginação.
    Há quem goste e há quem não goste. Há pessoas tão "pé-no-chão", tão realistas, que qualquer detalhe que lhe seja humanamente impossível, já a desagrada.

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  5. Oi Ciro!
    As narrativas servem justamente para nos afastar um pouco da realidade, e seria chato demais se fosse tudo igualzinho à vida real...

    Um abraço! =D

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  6. nossa apesar de ser um texto grade,eu amei levei um bom tempo lendo.

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