domingo, 29 de janeiro de 2012

O Império do Sol, die Freudenabteilung e outros devaneios

Já faz bem uns 10 anos que eu ouço Joy Division, desde quando uma colega me deu uma fita cassete [nossa, eu tou ficando velha!] com várias músicas dos anos 80 gravadas. Duas delas eram Transmission e Love will tear us apart, e eu lembro que depois disso o primeiro CD que eu comprei foi o Substance, a coletânea mais famosa do Joy. Com o passar do tempo a coleção de músicas foi aumentando, e hoje eu tenho a discografia toda no netbook.

Daí esses dias eu assisti um filme chamado O Império do Sol, e como não podia deixar de ser fui pesquisar sobre ele na internerds. A primeira coisa que eu descobri foi que o personagem Jim Graham foi interpretado por um jovem Christian Bale, que viria a interpretar o Batman de Christopher Nolan. Mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que eu sou curiosa, e quando cliquei no nome do escritor do livro que deu origem ao filme eu tomei um susto e minhas sinapses bêbadas entraram em ação.

O autor em questão é J. G. Ballard, e a história narrada em O Império do Sol é ficcional, apesar de relatar grande parte das experiências dele na Segunda Guerra Mundial. O susto eu levei quando eu olhei a lista de livros escritos por ele e me deparei com um chamado The Atrocity Exhibition, publicado em 1969. Ora, Atrocity Exhibition é o nome da primeira música do álbum Closer, de 1980, lançado após a morte do vocalista, Ian Curtis. Eu me recusei a acreditar que era só coincidência, e depois de algumas pesquisas descobri que o Ian batizou a música depois de ter lido o tal do livro. Segundo o artigo da Wikipedia [em inglês],

As histórias descrevem como o panorama da mídia de massa inadvertidamente invade e estilhaça a mente privada do indivíduo. Sofrendo de um colapso mental, o protagonista – ironicamente, um médico num sanatório – rende-se a um mundo de psicose.

Vamos dar uma olhadela no começo da letra da música:

The silence when doors open wide
Where people could pay to see inside
For entertainment they watch his body twist
Behind his eyes he says 'I still exist'
This is the way, step inside

In arenas he kills for a prize
Wins a minute to add to his life
But the sickness is drowned by cries for more
Pray to God make it quick, watch him fall
This is the way, step inside

O silêncio quando as portas abrem-se completamente
Onde as pessoas poderiam pagar para ver lá dentro
Por diversão eles veem seu corpo se retorcer
Por trás dos olhos ele diz 'Eu ainda existo'
Este é o caminho para a entrada

Nas arenas ele mata por um prêmio
Ganha um minuto para adicionar à sua vida
Mas a doença é afogada por gritos de "mais"
Ora a Deus para que seja rápido, veja-o cair
Este é o caminho para a entrada

Parece alguém que está meio perturbado mesmo, não? Eu não tive a oportunidade de ler o livro, mas conheço bem o processo criativo do Ian, e a julgar pelo resto do álbum Closer, essa música sintetiza bem o estado mental em que ele se encontrava, o que culminou com seu suicídio aos 23 anos de idade.

Daí lembrei de outra coisa. O nome da banda, Joy Division, foi retirada de um livro chamado "The House of Dolls", de autoria de "Ka-tzetnik 135633". Fuçando mais um pouquinho, descobri que Ka-tzetnik significa "prisioneiro do campo" em Iídiche, a língua germânica usada pelos judeus – é uma espécie de alemão escrito com caracteres hebraicos. Por sua vez, Ka-tzetnik é uma derivação de ka-tzet, que é a pronúncia alemã de KZ, a sigla de Konzentrationslager, "campo de concentração". O nº 135633 era o número de identificação do autor do livro, cujo nome de batismo é Yehiel Feiner, mais conhecido como Yehiel De-Nur, Dinur ou Karol Cetinsky [corruptela de Ka-tzetnik].

Depois dessa explicação sobre o tal do nome misterioso, vamos ao nome da banda. Neste livro, Yehiel descreve o funcionamento, entre outras coisas, das Freudenabteilung, "divisões da alegria", que era onde as prisioneiras judias eram mantidas para a "diversão" dos nazistas. Bernard Sumner, o guitarrista e dono da cópia do livro, gostou do termo Joy Division e adotou esse nome para a banda, que até então chamava-se Warsaw.

Tempos depois, Ian escreveu uma música chamada No Love Lost.

Lá vai a primeira estrofe:

So long sitting here,
Didn't hear the warning.
Waiting for the tape to run.
We've been moving around in different situations,
Knowing that the time would come.
Just to see you torn apart,
Witness to your empty heart.
I need it.

Sentado aqui há muito tempo,
Não ouvi o aviso.
Esperando a fita acabar.
Estivemos nos movendo em situações diferentes,
Sabendo que o tempo chegaria.
Apenas para te ver despedaçada,
Testemunha de seu coração vazio.
Eu preciso disso.

Daí, logo depois desta estrofe, Ian utilizou um trecho do livro:

Through the wire screen, the eyes of those standing outside looked in at her as into the cage of some rare creature in a zoo. […] In the hand of one of the assistants she saw the same instrument which they had that morning inserted deep into her vagina. Her body shuddered instinctively. (p. 170)

Através da tela de arame, os olhos daqueles parados do lado de fora olharam para dentro, para ela, como se olhassem para a jaula de algum animal raro num zoológico. […]  Na mão de um dos assistentes ela viu o mesmo instrumento que eles haviam, naquela manhã, inserido fundo em sua vagina. Seu corpo estremeceu instintivamente.

Na letra, Ian modifica um pouco o trecho e troca "her vagina" por "her body", bem como "Her body", na outra frase, por simplesmente "She". E ainda adiciona, ao final do trecho, a frase "No life at all in the house of dolls… No love lost" [nenhuma vida realmente na casa das bonecas… nenhum amor perdido].

É de assustar um pouco a referência, não? É sabido que Ian era meio obcecado pela Segunda Guerra Mundial, o nome da banda deixa isso claro depois que se descobre a origem, e pelo menos as letras dessas duas músicas dão a dimensão do gênio criativo dele, mesclando a realidade que ele vivia – Ian seria considerado bipolar nos dias de hoje, além de sofrer de epilepsia – com as situações descritas nos livros que lia. Tirando o fato, é claro, do tom baixo-barítono poderoso com que Ian era capaz de cantar.

Essa música não saiu em nenhum dos dois álbuns de estúdio oficiais, vindo a ser um b-side da coletânea Substance, a mesma que eu adquiri há nove anos. E um filme, um único filme, foi capaz de me despertar uma curiosidade que revelou que, em se tratando de Segunda Guerra Mundial e Joy Division, as coisas não se cruzam por mera coincidência.

8 comentários :

  1. Bah, super super (sim, dois super) interessante o texto! Duvido que muitos fãs enlouquecidos pelo Joy Division saibam sobre esses "detalhes" da história deles. Não são detalhes, na verdade, mas pouca gente deve ter se ligado. Só alguém com as sinopses mais bêbadas mesmo! :P

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    1. E eu nem sou curiosa o suficiente pra ir atrás de uma ideia plantada na minha cabeça, né? =P
      Tem uma informação sobre uma música do Depeche, do Speak and Spell, que acho que também não é tão conhecida: Tora! Tora! Tora! é o grito de guerra japonês para a guerra, e tora, segundo eu pesquisei, significa "tigre"... tá vendo, curiosa ao extremo!
      Um beijo, querida!

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    2. Onde se lê "grito de guerra japonês para a guerra", leia-se "grito de guerra japonês para a vitória". =P

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  2. Li,realmente estas informações pra mim são novidades.
    Gostei de ler esta postagem.
    Beijinhos.

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    1. Oi Jor! Eu já sabia de algumas - a origem do nome do grupo, por exemplo -, mas as outras foram todas pesquisadas a partir do "susto" que eu tive... Legal como tudo se cruza em algum ponto, né?
      Beijos, e obrigada pelo comentário! =)

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  3. "loooooove... looooove will tear us apaaaaaartttt... agaaaain...."

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    1. "just that something so good just can't function no more..."

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  4. Que texto fantástico :) adorei a pesquisa. Eu não fazia ideia de nenhuma das coisas que você encontrou.

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