Rainer Maria Rilke (04/12/1875 – 29/12/1926) foi um poeta alemão. Na verdade ele era tcheco, mas naquela época era tudo uma coisa só, então ele é considerado alemão, mesmo porque escrevia em alemão… enfim. O primeiro contato que eu tive com ele foi lá na Casa da Palavra, em Santo André, nos idos de 2007, durante um curso de Oralidade Poética que eu fazia lá. Eu não me lembro mais de quais textos dele a gente estudou, mas isso não importa agora.
A primeira publicação de Rilke data de 1894; é um livro de poemas de amor chamado Leben und Lieder (Vida e canções). Depois disso, ele publicou vários outros livros de poemas, e um único livro em prosa, Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge (Os Cadernos de Malte Laurids Brigge). Confesso: li-o recentemente e não entendi foi nada…
O verso que dá nome a este texto foi retirado do soneto Archaischer Torso Apollos (Torso Arcaico de Apolo), que foi traduzido por Manuel Bandeira. Lá vai:
Archaïscher Torso Apollos
Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,
sich hält und glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, und im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.
Sonst stünde dieser Stein entstellt und kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
und flimmerte nicht so wie Raubtierfelle
Und bräche nicht aus allen seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern.
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Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
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Vou fazer um mea culpa aqui e dizer que a poesia de Rilke não me é familiar. O contato maior que eu tenho com a obra dele é com um livrinho minúsculo que saiu em formato pocket pela L&PM. O nome? Briefe an einen jungen Dichter (Cartas a um jovem poeta).
Um belo dia um moço que tinha aulas na mesma escola que Rilke um dia estudou resolveu mandar uma carta e alguns poemas a ele. Rilke não só respondeu a carta, como manteve contato com este moço por alguns anos. Depois da morte de Rilke, as cartas foram publicadas em livro.
Só pra vocês terem uma noção do motivo pelo qual esse livro é o mais conhecido na obra do Rilke, segue abaixo um trecho da primeira carta. Peço que leiam, porque são palavras valiosas. Mas preciso avisar: a vida nunca mais é a mesma depois da leitura de alguma carta do Rilke…
"Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir."
Eu posso garantir pra vocês, como poeta que sou – ou era, sei lá – e como ser humano, esse conselho que ele dá é mais amplo, não se restringe ao âmbito da escrita poética. Rilke era uma pessoa solitária por natureza, e se a gente parar pra pensar o quanto a solidão é desestimulada ultimamente (taí as trocentas redes sociais que acessamos não me deixando mentir), fazendo com que sejamos meio que obrigados a sermos seres sociáveis – pois seres sociais já o somos, posto que vivemos em sociedade – e deixemos a nossa individualidade de lado, sem termos tempo pra pensar em nós mesmos, no que queremos, no que nos faz bem, independente desta vida social que temos… dá pra pirar, certo?
Enfim, é isso. Eu recomendo fortemente a leitura das cartas do Rilke, não só as que compõem o livro Cartas a um jovem poeta, mas também as que estão em Cartas do poeta para a vida, que saiu pela Martins Fontes. Sigam o conselho: du mußt dein Leben ändern – você precisa mudar sua vida…
Realmente é uma bela carta! Nos preocupamos mais com o que os outros pensam do que com o que escrevemos. Otimo post!
ResponderExcluirAs cartas do Rilke são lindas, cada uma com um ensinamento diferente. A vontade que eu tenho é de presentear cada amigo que eu tenho com o livro de cartas dele, porque são lições de vida...
ExcluirÓtima lembrança, moça! Mais gente precisa descobrir Rilke, encantar-se com suas palavras, sua incrível percepção de mundo. É bem verdade o que disseste: lê-lo muda nossas vidas.
ResponderExcluirConcordo com você! Rilke foi uma mente rara, e deve ter sido maravilhoso conviver com ele...
ExcluirVamos começar uma campanha chamada "Leia uma carta do Rilke"? Aposto que a gente consegue mudar a vida de algumas pessoas com isso... ;)